28 março 2016

Contradições da Sociedade “Porco-Espinho”





Arthur Schopenhauer, o filósofo do pessimismo, com a “Parábola do Porco Espinho” realizou um primeiro esboço de leitura psicanalítica dos afetos paradoxais que caraterizam o humano, antecedendo dessa forma o conceito de ambivalência que, mais tarde, seria objeto de longas, cansativas e profundas análises de Sigmund Freud.

Os porcos espinhos quando enfrentam baixas temperaturas não se encostam a fim de se aquecerem, mantêm uma certa distância entre eles para não se ferirem mutuamente com seus próprios espinhos. Os instintos os levam a se manterem separados um dos outros, desviando-se do contato corpo a corpo, extremamente doloroso para eles. Aqui há uma analogia a ser explorada: os porcos-espinhos nos primeiros momentos de suas vidas, assim como acontece com o ser humano em seu primeiro desabrochar, se aconchegam numa intimidade maior, uma vez que os espinhos, por serem pequenos e imaturos, não provocam mal estar. Com o tempo, os porcos espinhos, para evitar o sofrimento, abdicam de viver colados uns aos outros.

Os espinhos, pelo lado psicológico, tem relação com tudo o que foi recalcado durante os primeiros anos da vida humana. Cedemos então uma parte do princípio do prazer, o outrora aconchegante ninho materno, para aceitar a realidade existencial. Nos primórdios vivíamos passivamente ligados a uma central que nos nutria e também nos protegia, sem que fizéssemos nenhum esforço. Após a ruptura dessa alienação prazerosa, apesar de vestidos, passamos a nos ver como o mais nu dos animais.

Zigmunt Bauman parece corroborar o pensamento schopenhauereano, principalmente agora, quando o tempo tem se tornado curtíssimo para se dar conta das inúmeras solicitações e apelos provenientes da cultura da pressa que na pós-modernidade nos bombardeia de maneira ininterrupta. Diz ele: Os relacionamentos são como a vitamina C: em altas doses provocam náuseas e podem prejudicar a saúde”.

Hoje o relacionamento interpessoal ou cara a cara está sendo substituído pelo termo conexão, ou andar conectado. Para o mercado tecnológico e cibernético atual, não é mais necessário que seres humanos se aproximem demais. Na sociedade de consumo “porco-espinho”, para evitar o perigo e a dor de enfrentar cara a cara a conversa mole do vendedor, o conectado compra seus produtos na solidão de seu quarto, tendo apenas seu smartphone em uma das mãos. Em vez de ficar numa loja aturando um chato vendedor a sua frente, perturbando como um carrapato colado a seu redor, o conectado da pós-modernidade, agora, pode rir secretamente diante de uma telinha sem ninguém por perto. Em questão de segundos, após dar três ou quatro cliques no pequenino teclado de seu aparelho, experimenta seu êxtase particular ao ver aparecer no visor a gloriosa sentença: “Sua compra foi realizada com sucesso”.

Conheço pessoas que, para evitar o alvoroço e a dor de cabeça de ter que enfrentar trânsito congestionado e assédio de pedintes e trombadinhas, já não comparecem tanto aos cultos de adoração em suas igrejas, preferindo alegrarem-se ou emocionarem-se de forma solitária assistindo todo o ritual sagrado via “on line”. Já ouvi pelos meios de comunicação até relatos de casos de curas e batismos virtuais. Com o progresso avassalador da tecnologia cibernética, o fiel-igrejeiro não vai mais gastar tanto tempo na escolha de qual roupa deve vestir, qual o calçado que deve usar para combinar com a blusa, qual a tintura de cabelo e outros produtos de maquiagem que se devem usar sem medo de que se derretam com o intenso calor comum nessa época do ano. Agora, com o avanço da internet Deus é quem vai a você, aí mesmo em seu aposento. Afinal de contas não são os olhos do Senhor, mas a sua mensagem que vai até onde você se encontra: não importa que esteja de cuécas, de bermudas, camisolas ou mesmo no seu próprio banheiro, o que não pode é se desgrudar de seu smartphone. Se houver falha no “Wi Fi” de sua residência, pode com facilidade acessar o sinal do vizinho e ser socorrido em segundos. Veja como é “maravilhosa” a liberdade que o conectado desfruta sem ter que se envolver em longos preparos que só fazem subir a pressão arterial, além dos riscos de indigestão que uma refeição feita a toque de caixa pode provocar.

Na sociedade “Porco-Espinho”, o espaço virtual vem sendo uma grande alternativa para evitar, até certo ponto, o mal estar da relação pessoal face a face. Mas esse refúgio virtual, como tudo que se faz ou alcança para fugir do “Princípio da Realidade”, tem seus efeitos colaterais. Esse novo modelo de sociedade corre perigo na medida em que vai fazendo das pessoas, fortalezas sitiadas, e como tais, poderão ser tomadas como elementos estranhos por aqueles que optaram pela vivência cotidiana dura e cruel do relacionamento ao vivo.

Do lado de fora dos muros das fortalezas virtuais da sociedade dos porcos-espinhos estão os que lutam para solidificar os frágeis laços sociais com seu grito de que “seremos mais ricos se todos puderem ser incluídos e ninguém ficar de fora”. No entanto, os céticos, que veem o homem como animal ambivalente (que deseja a companhia do outro, e ao mesmo tempo teme seus espinhos), percebem a luta pela solidez desses laços como algo utópico.

Em uma das cartas sobre o individualismo e a severa crise no relacionamento interpessoal que por ora passamos, tempo em que tudo o que é sólido anda se desmanchando ou se liquidificando, Bauman faz um importante alerta:

Nesse nosso mundo sempre desconhecido, imprevisível, que constantemente nos surpreende, a perspectiva de ficar sozinho pode ser tenebrosa”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 28 de março de 2016


Site da Imagem: picarelliassociados.com


21 março 2016

Soberano é o Mercado






Muito se ouve falar, principalmente em meio a graves crises, que é o Mercado quem manda e não o Estado. Se nos aprofundarmos pela ótica da psicologia veremos que esse conceito de soberania do Estado (representado pelos poderes executivo, legislativo e judiciário), cai por terra. Somos seres ambivalentes, e como tais, sujeitos a flutuações do ambiente líquido no qual vivemos. Sigmund Freud foi um dos primeiros a observar como a energia instintiva do indivíduo pode se tornar destrutiva quando descarregada em condições de pressão intensa do Superego.

A pretexto de evidenciar o poder do Mercado: 

Na vigência da segunda guerra mundial, tempo em que a indústria experimentava sua grande ascensão com o recrutamento de levas de gente para a fabricação de armas e transportes, quem obteve estratosféricos lucros foram judeus da nobre família Rothschild, financiadores do mercado de então. Eles, de certa forma, passaram incólumes pelo mar de devastação que a última grande guerra provocou. Interessante é que financiavam tanto o exército de Hitler como os de seus adversários. Muito antes, na década de 1820, os ricos judeus Rothschild, com seu grandioso palácio situado à rua Laffite em Paris todo em ouro e mármore, influenciavam os governantes, visando obter sempre maiores ganhos. (Vide link: levibronze.blogspot.com.br/2013/01/os-judeus-na-sociedade-1-parte ).

Na sua obra Vida para Consumo (página 87) Zygmunt Bauman, em uma profunda e lúcida análise, chega a seguinte conclusão: “o poder de agir, agora flutua na direção dos mercados, e a política, que, embora continue a ser domínio do Estado, é cada vez mais despida de sua liberdade de manobra e de seu poder de estabelecer as regras e apitar o jogo. O Estado como um todo, incluindo seus braços jurídicos e legislativo, torna-se um executor da soberania do mercado.” Em outras palavras ele quer dizer que forte mesmo é o mercado.

Hoje, costuma-se dizer que as bolsas de valores refletem a solidez do país. Trocando em miúdos, é o senhor-mercado que sinaliza qual o rumo que o país deve tomar para sair de uma crise político-econômica. Não podemos é subestimar a pressão que os mercados exercem sobre os poderes de um país em crise.

A manchete “O Índice Bovespa Sobe com Notícia Sobre Delação de Delcídio”, estampada na maioria dos  nossos jornais, é uma prova de que o Mercado é soberano e sinalizador dos rumos que uma nação, para sobreviver num mundo globalizado, deve tomar.

Quando um ministro na Inglaterra, sobre o problema da imigração, declarou que o objetivo de seu país era o de só aceitar pessoas de que o país precisa e excluir àquelas de que não necessita, sinalizou positivamente para o mercado, dando-lhe o aval de saber quais as necessidades de consumo daquele grupo, para com isso, alavancar seu domínio sobre eles.

O mercado tem como que uma ojeriza a exposição das vísceras ou entranhas dos constituintes dos poderes da república. O que ele quer é uma solução rápida ou tudo vai por água abaixo.

No momento, o que mais o Senhor Mercado aguarda é a decisão do STF sobre o imbróglio entre os três poderes de uma república em frangalhos. O poder Judiciário que, nos últimos e frenéticos dias, foi tanto objeto de elogios como de ferozes críticas, está com a batata quente nas mãos. Como leigo, penso, que só um pacto poderia agradar a gregos e troianos.

Difícil mesmo é adivinhar como se fará tal pacto diante da expressão, “Dura Lex, Sed Lex”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 20 de março de 2016


Site da Imagem: resumoscolar.com.br/geografia/cultura

07 março 2016

E Por Falar em Jararaca...




Se quiseram matar a jararaca, não acertaram na cabeça, acertaram no rabo e a jararaca está viva”. Esta foi a frase “sapecada” por Lula, em sua recente via crucis política, após ser levado coercitivamente para depor na Polícia Federal.
Antes de tudo, é preciso reconhecer que o ex-presidente é um exímio elaborador de frases de efeito, quase sempre revestidas de significações altamente reveladoras dos afetos mais profundos que engendram a alma humana.

Acho que está bem fresquinha na mente dos que apreciam a literatura brasileira, o personagem Macunaíma, 'herói às avessas' criado por Mário de Andrade. No romance, quando Piaimã o gigante comedor de gente , ameaçou trazer a jararaca Elite para o agarrar, Macunaíma, gelado de medo gritou: “Com a jararaca ninguém não pode não!”

Para sabermos mais sobre a metáfora “jararaca”, primeiramente vamos ver o que diz o site Infoescola sobre esse repulsivo réptil:

O habitat natural da jararaca é o Brasil, podendo (olhem aí!) ser encontrada na Venezuela. Alimenta-se especialmente de roedores (ratos). A cor dessa cobra proporciona a ela uma excelente camuflagem. É proveniente de zona agrícola, mas pode ser encontrada em zonas urbanas”.

Bom mesmo é divagar sobre a serpente no campo das metáforas, pois só assim é que podemos apreender muita coisa sobre a natureza humana e suas idiossincrasias. Senão vejamos:

A serpente no livro bíblico do Gêneses tem uma conotação má: Javé, o Deus judaico-cristão amaldiçoou-a a perder as pernas e andar se rastejando como castigo por ter seduzido Eva (mulher de Adão).

John Milton, em Paraíso Perdido (considerado por muitos, o segundo maior clássico da literatura mundial) narra, de forma poética, a queda do antigo “Anjo de Luz” que, revoltado por ter sido expulso dos céus, propôs em seu coração corromper a criação humana, pondo em xeque os propósitos da autoridade divina que estava acima de toda criação. Entretanto, pela psicologia junguiana, a serpente simboliza um interessante arquétipo estruturante de nossa psique, apesar de no imaginário popular sonhar com serpente ser prenúncio de confusão e hecatombe.

Ma mitologia do antigo Egito, a gigante cobra “Apófis” na escuridão da noite emergia das águas profundas do Nilo para atacar o “Deus Sol”, ameaçando o equilíbrio do cosmos. Com certeza, foi com a prévia autorização do faraó Seti I (1300 a C), que cunharam a imagem dessa poderosa serpente em relevo na tampa do seu próprio mausoléu.

Por falar em faraó, não poderíamos deixar de fora a história de “cobra engolindo cobra” narrada no livro bíblico de Êxodo: “A vara de Moisés e Arão jogada diante dos faraós e seus conselheiros transformou-se em serpente. O faraó, querendo demostrar que tinha maior poder, mandou chamar seus sábios, feiticeiros e magos do Egito e, por meio de sua ciência oculta, fez um milagre mais espetaculoso: cada um deles jogou ao chão sua vara, e estas se transformaram em serpentes. Mas no final foi a vara de Arão que prevaleceu ao engolir as varas da equipe do faraó”. (Vide Link). É bom lembrar aqui, que para se compreender a crise que o Brasil mítico e político ora atravessa, é necessário traduzir os elementos representativos cobra, vara, faraó, e os personagens Moisés e Arão como metáforas. Para que se obtenha um novo campo de significações, temos que ir além do contexto convencional dos termos em negrito.

E não é que na simbologia de Jung, a serpente do mito da Criação (Gêneses) pode ter uma conotação positiva: a de representar a criatividade psíquica profunda, tanto é que foi descrita como o mais sagaz de todos os animais. No entanto, o renomado analista autor de “Saudades do Paraíso”, Mario Jacoby, discorrendo sobre a criatividade simbolizada pelo réptil, diz algo que, por ora, tem muito a ver com o que tanto nos aflige ou atormenta: “A função estruturante da vergonha, tão criativa para construir a separação do público e o privado foi também contaminada defensivamente junto com a criatividade.”

Carlos Amadeus Botelho Byington, em “Inveja Criativa” faz uma defesa da serpente. Diz ele: “a inveja, como principal afeto arquetípico da serpente, não é primordialmente ruim. […] a serpente é a culpada, a inveja é destrutiva, e o castigo justo e merecido, se considerado pela forma literal da lei de Javé, típica legislação em causa própria para manter o poder. Dentro da perspectiva patriarcal a coerência é aparentemente perfeita mas, dentro da perspectiva da alteridade, que julga baseada no contraditório, o apego patriarcal defensivo é desmascarado com o juiz e a sentença”.(“Inveja Criativa” página 112)

O livro bíblico do apocalipse, segundo os fundamentalistas cristãos, fala do destino atroz da serpente (ou do lado obscuro do arquétipo ofídio) no final dos tempos:

E foi precipitado o dragão, a antiga serpente que engana todo o mundo...” (Apoc. 12, 9)

Exilado em uma ilha deserta, João, o esperançoso apóstolo do apocalipse, almejava ainda em vida alcançar uma nova terra onde não haveria nem enganador nem enganado. Esse reino fazia parte da utopia por ele mesmo denominada, “milênio de paz”. O apóstolo Paulo também deixou patente em suas cartas que foi invadido por desejos semelhantes quando, em pensamentos arrebatadores, via corpos corruptíveis transformando-se em corpos incorruptíveis.

Mais voltemos ao tema central do presente ensaio, ou seja, a figura da jararaca ―, serpente sobejamente conhecida no nordeste brasileiro , inclusive muito cantada e decantada em versos e prosas. Do livro Cantadores de Leonardo Motta, que trata de duelos entre cantadores de violas, replico abaixo um verso de cordel que narra a peleja do cego cearense de Mecejana, Symphrônio, com seu competidor, Serrador, pernambucano residente no sítio Taboca do major Ignácio Caetano, situado ao pé da serra do Araripe [Fonte: Memórias Ancoradas em Corpos Negros – de Maria Antonieta Antonacci ]:


Canguçu é meu cavalo
Corre-campo é meu facão
JARARACA é meu chicote
Cascavel meu cinturão
Caranguejo é minha espora.
                               Imbuá ― meus anelão.   [Motta,1921, p. 151]
 



Por Levi B. Santos
Guarabira, 07 de março de 2016

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