12 setembro 2013

O Voo Incerto da Coruja



Na mitologia grega, Atena, deusa da Guerra e da Sabedoria, em seu caminhar, nunca se desgrudava de uma coruja pousada em seus ombros.

Essa ave tem a capacidade de ver na escuridão o que os outros seres não vêem. O dom inato de profunda conhecedora daquilo que estava oculto, fez com que esse pássaro se tornasse, na cultura ocidental, o símbolo do conhecimento. O instinto nato de, com olhos arregalados, permanecer a noite inteira vigilante e atenta, fez dela o símbolo maior para os gregos que consideravam o período noturno propício ao filosofar e ao exercício do intelecto.

O século das luzes, tendo a razão como sua maior lâmpada, veio com uma tarefa árdua e quase impossível: a de iluminar as densas trevas da irracionalidade, ou do oculto que existia em cada indivíduo. O ideal iluminista, na época, foi bem representado no quadro de Goya, onde se vê, em destaque, monstros povoando o sonho da razão (vide foto do topo). A pintura do artista reflete um ser frágil, mergulhado em um mundo tenebrosamente onírico, cercado por monstros da irracionalidade a espantar a razão para bem longe.

A certeza, a coerência e a estabilidade do idealismo iluminista deram lugar na pós-modernidade, ao seu paradoxo ― ansiedade da incerteza, a insegurança e o mal estar de um mundo em desordem. Na pós-modernidade a supremacia da razão parece sucumbir ante à re-sacralização do mundo.

 Sérgio Paulo Rouanet, considerado por muitos, defensor da razão iluminista, aponta uma terceira via para amenizar o mal estar da pós-modernidade entre as diversas culturas; uma via que passa pela manutenção e observância de um núcleo mínimo de princípios universais: “Se você tem um mundo dominado por particularismos selvagens sem regras universais que permitam a coexistência não-antagônica desses particularismos, você vai ter um mundo de todos contra todos, uma guerra de culturas.” (Mal−Estar na Modernidade – Editora Companhia das Letras)

O fundador da psicanálise, foi um iluminista. No projeto de Freud, a psicanálise através da deusa razão imunizaria o sujeito contra todos os messianismos. Todavia, em contraste, ele sabia que a natureza paradoxal/pulsional do homem era ineducável. Lá no fundo ele pressentia que os ideais universalistas podiam ser vencidos por paixões nacionais, raciais e religiosas.

“A Coruja e o Sambódromo” ― de S. P. Rouanet (filósofo e ensaísta membro da Academia de Letras) é uma humorada e significativa fábula que tem no centro de sua trama uma coruja (a deusa razão) em um voo incerto.

Trago, com os devidos créditos ao autor, o vôo solitário dessa ave totêmica pelo mundo afora. O ponto final de sua angustiada viagem é o sambódromo, onde se queda profundamente deprimida com o que viu e ouviu:


                  “A Coruja e o Sambódromo(texto condensado)
 (Mal-Estar na ModernidadeS. P. Rouanet)

A heroína desse ensaio é uma Coruja.  Ela já foi uma voz arrogante, pois representava a razão universal, tanto a teórica, capaz de compreender o mundo, como a razão prática, capaz de legislar para os homens. Mas hoje, anda triste e cabisbaixa,  tiritando de frio e com medo da sombra. Ela lembra com orgulho do seu período de aproximação quando foi canonizada na Notre Dame, transformando-se na deusa da razão [...].

Mas tudo isso é passado. A coruja resolve investigar o presente: quem sabe se no mundo contemporâneo há ainda lugar para ela?

 A coruja resolve viajar [...]. [...] Ela está sendo acusada de ser um pássaro etnocêntrico, que quer transferir para o mundo inteiro hábitos que só valem nos bosques europeus, é um pássaro totalitário, que quer impor seus pios crepusculares a todo o resto da floresta que vêm de centenas de passarinhos diversos, com suas cordas vocais próprias, com sua plumagem inconfundível, e com seus ritos amorosos característicos.

 Ela está interessada em visitar algumas regiões conflagradas do planeta.  Agora que o fim da União Soviética eliminou o risco de uma Terceira Guerra Mundial, ela percebeu perplexa, que a Primeira Guerra Mundial está acontecendo de novo na Iugoslávia. Que a guerra de 1914-18 está incendiando de novo os Bálcãs [...]. Escutando tantas alusões à Eslovênia, à Croácia e a Dalmácia, ela não pode acreditar na dissolução do império austro-húngaro [...]. Mas nada disso a impediu de perceber o essencial: a matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças em nome de ignóbeis particularismos nacionais, étnicos e religiosos.

Em Berlim a coruja observa, com nojo, cenas de violência semelhantes as que ocorreram na véspera da  Segunda Guerra. As vítimas, agora,  são turcos, negros e vietnamitas.[...].

Contendo a custo uma golfada de vômito, a coruja vai visitar o outro campo ― o dos discriminados. Ali decerto ela ouvirá opiniões mais racionais. Através do sótão, observa uma festa de estudantes estrangeiros. Há muito vinho e o ambiente é caloroso e fraterno.. Estão presentes um paquistanês, um nigeriano e um brasileiro. É um grupo heterogêneo, mas unificado por uma emoção forte ― o ódio ao europeu ― por uma idéia central ― a especificidade do Terceiro Mundo ―, e por uma ambição comum ―manter a identidade das respectivas culturas. [...]

Desgostosa a coruja voa para o Oriente, recordando-se de que foram os muçulmanos que divulgaram no mundo civilizado a ciência grega, contribuindo para uma visão secular do mundo. Ela pára no Irã. Mas não consegue falar com os poetas Fardusi e Hafiz de Chiraz, como desejava. Os interlocutores estão todos muito ocupados, dilapidando uma adúltera. [...]. [...] A caminho, passa por uma multidão vociferante diante da embaixada da índia. O que tinha se passado? Um dos manifestantes explica: era um protesto contra os fanáticos hinduístas que em nome de Brahma tnham destruído uma mesquita perto de Calcutá. A coruja chega ao seu destino mas não encontra o embaixador. Ele tinha ido a um serviço religioso. Certamente a um mistério de Elêusis, sugere a coruja, esperançosa. Nada disso,  responde o mordomo, foi ouvir o pregador evangélico Billy Graham. Abre-se a porta da embaixada do Brasil, ao lado, e sai uma robusta senhora, com uma faca afiada. Felizmente, a coruja percebe a tempo que a mulher estava mal-intencionada: na ausência de uma galinha preta, uma gorda coruja poderia ser agradável aos exus.

Ainda com o coração aos pinotes, a coruja, atravessa o Atlântico. Ela pousa numa universidade americana. Está se realizando uma assembléia universitária, o  que interessa imediatamente a coruja, animal político por excelência. Discute-se a questão dos direitos humanos no campus. [...]. [...] Um militante gay diz que as liberdades de 1789 se dirigiam apenas aos heterossexuais, enquanto um ativista negro afirma que a Declaração dos Direitos Humanos só pensara na emancipação dos europeus. O mal foi que a revolução visara o homem em geral, e portanto, como correlato, o indivíduo abstrato, em  vez de visar particularidades concretas, como os negros, as mulheres, os índios.[...]. [...] A coruja tenta defender-se, dizendo, por exemplo,  que sua Atenas estava muito longe de discriminar os homossexuais, mas é severamente reprimida por usar essa palavra, em vez de “pessoas de orientação diferente dos heterossexuais"[...]. [...] Ela ainda quer argumentar,  mas desanima quando a “chairperson”  a acusa de ter uma posição individualista, falando em seu próprio nome, em vez de falar como porta-voz credenciada da comunidade zoológica à qual pertence, defendendo os direitos humanos em vez de defender a identidade cultural das corujas, e perdendo, em conseqüência, uma excelente oportunidade de propor um termo politicamente correto para designar a coruja ― por exemplo, “animal com horários notívagos diferentes dos demais dos horários matinais dos demais pássaros”.

A coruja faz nova tentativa e pousa no México, onde um professor como nome de herói de Tolstoi tenta há vários anos desescolarizar a sociedade.  Há dois seminários em salas contíguas. Num deles, o tema é “A Ilusão da Ciência”. Um indiano de Goa diz que a ciência é uma invenção eurocêntrica destinada a subjugar os povos do Terceiro Mundo. Um discípulo de Foucault diz que a ciência é uma prática de poder, destinada a produzir a docilidade social.[...]. [...] Um teólogo de Tubingen declara que a ciência tinha privado o homem de Deus, opinião partilhada por um antropólogo que de tanto estudar uma comunidade religiosa eclética se vestia com um camisolão branco e se julgava a reencarnação de São João Batista.

Aturdida a coruja passa para a sala ao lado. Outro grupo estuda a questão da moralidade.[...]. Um missionário presbiteriano  que dedicara os últimos vinte anos a evangelizar os pigmeus informou que essa interessante cultura praticava o Decálogo às avessas, com grande austeridade:  por exemplo, era eticamente obrigatório desejar a mulher do próximo e insultar pai e mãe, o que provocava enormes sofrimentos, pois esse povo era naturalmente casto e dotado de grande piedade filial.

Mas o ambiente vai ficando irrespirável. Um médico homeopata que tinha se convertido ao Xamanismo enfumaça a sala com fumigações pestilenciais. [...]. [...] As agressões se generalizam, e o seminário termina ingloriamente, com a fuga desabalada dos mais tímidos pelas alamedas do parque. A própria coruja deixa algumas penas na refrega. [...]

Ela chega ao Rio. Ei-la no sambódromo. Há um grande desfile, um carro alegórico cheio de bananas e abacaxis, mães de santo girando com suas saias rodadas. Macunaíma fazendo gestos obscenos para as arquibancadas e um samba-enredo composto pelo modesto autor deste ensaio. O tema é  a emergência entre nós de um novo tipo de humanidade, sensual, espontâneo e intuitivo em tudo diferente da humanidade gringa; o florescimento, em nosso meio,  de um saber próprio, de uma ciência ajustada às particularidades nacionais; e o surgimento de uma nova moral, que convenha ao nosso clima, à nossa formação multirracial e às nossas raízes históricas.

É demais para a coruja. Ela diz coisas sentenciosas que ninguém quer ouvir e voa, deprimida, em direção a um pouso incerto.

P.S.: Devido não só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim.” (Freud, em “Mal-Estar na Civilização” ― Editora Imago)     



Guarabira, 12 de setembro de 2013                                                                                                                                                                                                                                                                

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