09 maio 2008

O HINO CENSURADO



Na maioria das noites, na época dos meus verdes anos, freqüentava juntamente com os meus pais, a pequena igreja Assembléia de Deus em Alagoa Grande, situada no final da Rua São José ─, hoje no local funciona uma outra denominação protestante: a Igreja Batista.

O ritual dos cultos era quase o mesmo dos dias de hoje. Iniciava-se sempre com uma oração com todos de pé. Em seguida o pastor deixava a cargo dos membros, os pedidos dos hinos da “Harpa Cristã” a serem cantados. O mais rápido no pedido era atendido, e toda igreja era obrigada a cantar o hino correspondente ao número de ordem solicitado em voz alta. Cantava-se cerca de três a quatro hinos, antes da leitura bíblica devocional. Em seguida dois ou três pregadores usavam da palavra. A cada pregação seguia-se um hino, quase sempre da Harpa Cristã.

Havia um hino emblemático era o de número 17 (Pensando em Jesus), que quando cantado, levava os rapazes da igreja a esboçarem olhares capciosos uns para os outros. Os mais idosos cantavam esse hino com toda a pujança e inocência, sem reparar que em uma de suas estrofes havia duas palavras de duplo sentido: uma referia-se a um pequeno pássaro comum em nosso meio, denominado de “rola” (o mesmo que rolinha), que os caçadores ainda hoje apreciam a sua caça, devido sua saborosa carne. Mas, existia também um outro significado para a palavra “rola” ─ estava lá no dicionário escolar: “rola” era o apelido do órgão sexual masculino. A outra palavra que se seguia a essa era: “langor” que no dicionário significava: “choroso ou voluptuoso”. Lógico, que a maioria da moçada, no despertar da sexualidade, associava esse termo a algo sensual. Com o passar dos anos, eu notei que a terceira estrofe do hino que continha as mencionadas palavras, era cantada de uma forma dissimuladamente mais baixa que as demais estrofes. De modo que o hino, lá fora, já provocava risos entre os mais afoitos. Por pura brincadeira de alguns meninos (entre eles estava eu), esse hino era sempre pedido nos cultos, de modo que alguns dos irmãos mais velhos, já se sentiam constrangidos em cantá-lo.

A terceira e curiosa estrofe do hino 17 da Harpa Cristã era originalmente assim:


............“Do mar o bramido, da brisa o frescor;

..............Da 'rola' o carpido de doce 'langor';

..............Me falam sentidos, acordes dos céus,

..............Me trazem aos ouvidos os hinos de Deus".


Em alguns cultos de igreja cheia, eu me disfarçava escondendo-me entre os meus amigos e gritava: “O hino dezessete!...”

Por infelicidade, em um desses cultos, minha mãe me pegou em flagrante delito. Quando cheguei a minha casa, além de levar umas boas “puxadas” de orelhas, fui ameaçado de um castigo maior ─ que eu não quero aqui revelar ─, se eu tivesse o atrevimento de pedir para ser cantado esse hino novamente na igreja.

Eu, já no meu quarto, deitado, após ter apanhado de minha mãe uma sonora surra, imaginava com os meus botões: ora, o autor desse hino foi movido por boas intenções, ao colocar aquele representativo pássaro no seu poema musicado. Essa ave tinha um cantar choroso e saudoso, e sua carne era muito apreciada, principalmente na região nordeste. Penso que não passou pela cabeça do autor, a associação nominal do passarinho ao que os jovens do meu tempo tencionavam. O autor, quem sabe, deve ter esquecido de procurar no dicionário os outros significados para as emblemáticas palavras: “ROLA E LANGOR”. Porém, de uma coisa eu estou certo: o hino estava ali escrito e não poderia ser mudado. Seria um pecado imperdoável, se modificar ao bel prazer, um hino inspirado por Deus, ainda mais se sabendo que o mesmo fazia parte do rol dos hinos irrepreensíveis, como eram considerados os da “Harpa Cristã”.

Para minha surpresa, hoje, folheando um exemplar da “Harpa Cristã da atualidade”, deparei-me com o hino vergonhosamente censurado. Mancharam o nome do criador do melódico hino, ao retirarem sem o seu consentimento àquelas palavras carregadas de um sentido profundamente metafórico. Desonraram a memória do autor, que se pudesse, a essas alturas, teria se revirado de indignação no túmulo. Não sei se foi o espírito da ditadura militar dos anos de chumbo, ou se foi o preconceito revestido de uma forte dose de audácia que desfiguraram o hino de número 17. Não sabiam os censores, que ao fazer esses lamentáveis cortes de forma ignominiosa, simplesmente estavam confirmando os seus próprios recalques. Retirando a palavra “rola” do hinário, eles imaginavam que estavam depurando o hino, de algo que em suas concepções, poderia soar como coisa imunda.

Num flagrante desrespeito aos direitos autorais da obra, no lugar de “rola”, hoje está escrito: “ave”. Em lugar de “langor” puseram “amor”.

Não seríamos muito mais verdadeiros, se pudéssemos dar um basta na hipocrisia que alimenta os nossos enraizados preconceitos? Nunca é demais lembrar, o que faziam os responsáveis pela “santa inquisição” nos primórdios da igreja: perseguiam, prendiam, queimavam e matavam os seus opositores em nome de um “suposto” Deus. A inquisição de hoje, com ares de uma quase imperceptível sutileza, trabalha minando paulatinamente as consciências com sua intransigente e dogmática doutrina: através de manipulações, de retirada ou modificação de trechos e palavras do Livro Sagrado e dos Hinários Cristãos, sempre no propósito espúrio de esconder verdades dolorosas. Verdades essas, que em sua essência, vão de encontro às representações utópicas que os inquisidores exibem às multidões.

Tenho um velho volume da “Harpa Cristã” original (edição de 1967). Nele, continuo ainda a cantar o hino 17 da forma como o autor escreveu, e como os irmãos caçadores e apreciadores das rolinhas assadas e apetitosas daquele saudoso tempo, cantavam com água na boca. Menos a minha desconfiada mãe.




Crônica por Levi B. Santos

Guarabira, 09 de Maio de 2008

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