26 fevereiro 2007

O APRENDIZ DE VIOLÃO E O SEU MESTRE (in memorian)

José Gonçalves no Pão de Açucar - Rio de Janeiro - 1957








Eu sempre gosto de ficar no terraço da casa de minha mãe, por alguns momentos, olhando o tempo e as pessoas passarem, toda vez que visito a minha cidade. Em uma dessas minhas visitas fui testemunha de um resto de conversa jogado fora por dois velhinhos que se encontraram casualmente bem junto a mim, ali na calçada. Achei bastante interessante e de grande significação, aquele adágio popular, citado por um deles: “quem de moço não morreu, de velho não escapa” Refleti muito sobre este velho ditado, sobre a verdade e a certeza que ele encerra.
No apertado terraço da casa de mamãe, onde estava vendo aqueles dois velhinhos conversando, jamais passou pela minha mente, que ali mesmo, após alguns dias, receberia a notícia da morte do mestre e amigo José Gonçalves (esposo de minha tia Alice, por parte de pai).
Ultimamente tenho perdido amigos mais velhos do que eu, que foram marcos referenciais na formação de minha personalidade. José Gonçalves foi um deles.
Ele esteve sempre presente em minha memória, desde o tempo em que tinha meus sete ou oito anos de idade. Toda vez que pego do meu violão, vejo a criança que fui, de olhar circunspeto e corpo estático, completamente extasiado observando o mestre José Gonçalves na sala de sua casa, que ficava defronte a minha, na rua 13 de Maio, em Alagoa Grande, dedilhando garbosamente o seu violão e cantando com sua melosa voz de barítono, o seu predileto hino em “Lá menor”. Foi ele que incutiu em mim o gosto pela música e pelo violão. Não conto as vezes em que eu o ouvia lá de minha casa, cantando com sua voz forte e carregada de emoção, o poético hino ao som do seu velho violão. Tenho guardado na memória um trecho desse hino, que diz mais ou menos assim:


“Em trevas medonhas, vivi no mundo a vagar...
Meu barco sem leme, veio a mim um grande temporal...
Um leme novo me deu. Colocou no meu barco uma luz.
Que nunca se apagará, em todas as trevas ele há de brilhar..."

Este cântico tornou-se a marca registrada dos encontros musicais que faço atualmente com o meu filho George. Essa melodia saudosa de letra poética, creio eu, fez moldar o meu gosto pela música em tom menor.
Nos cultos de domingo, na igreja, quando ouvia o pastor anunciar: “vamos ouvir um hino pelo irmão José Gonçalves”, devido a minha pouca altura de menino, eu ficava na ponta dos pés, me empertigando todo à frente dos adultos, a fim de ver o “mestre” cantar e tocar aquele belo cântico. Lembro-me bem, que ele sempre usava nestas ocasiões um terno de linho branco bem engomado, contrastando com o seu violão de cedro reluzente, que tinha as laterais do bojo na cor de vinho tinto. Este instrumento fora feito com todo o carinho pelo marceneiro e exímio tocador de “cavaquinho” José de “Sinda”(esposo de minha tia Elcina ─ irmã de meu pai ).
Em meados do ano passado, já cansado pelo peso da idade, com o corpo desgastado pelas doenças que o afligiam há um bom tempo, resolveu fazer a que seria a sua última visita a Alagoa Grande ─ cidade de seu coração.
Lá no terraço exíguo da casa de minha mãe, conversamos por alguns minutos. Na oportunidade cantei baixinho para ele uma estrofe do velho hino. Notei que ele acompanhava o compasso da música, com os dedos tamborilando sobre os joelhos. Parei de cantar quando vi os seus olhos banhados em lágrimas. Só Deus sabia o que se passava em nossos corações. Naquele nosso último encontro faltou o velho companheiro “violão”.
Parafraseando o saudoso hino, agora posso dizer: “Deus colocou no seu barco uma luz que nunca se apagará”.

Ao mestre, com saudades.
Do seu grato aprendiz ─ Levi.


Guarabira, 26 de Fevereiro de 2007

21 fevereiro 2007

ADEUS POR UM INSTANTE





Não fui para o enterro de meu avô, nem vou a funeral algum. Já disse aos meus pais que se meus olhos não se fecharem primeiro para eternidade, não irei sepultá-los. Digo isso não por maldade, egoísmo ou desamor, mas porque quero sempre estar com fresca memória da imagem das pessoas “vivas” em minha mente. E ainda que alguém vocifere: “Mas e as últimas homenagens?”. Devo dizer que depois da morte, a vida física acabou, e segue-se o juízo. Por isso, as homenagens devem ser prestadas em vida. Infelizmente terei de comparecer ao meu enterro, deste não posso mesmo escapar.

Meu avô Alcides era austero. Era rispidamente sério, e às vezes, com carranca de meter medo. Mas de quando em vez, se transmutava num impagável contador de “causos” engraçadíssimos. “Causos” estes que não só arrancavam risos da platéia encantada, porém que também o divertiam muito e amiúde. E era nessas horas que ele deixava escapar um sorriso maroto que se desenhava furtivo em seu rosto severo.

Nunca me esqueço de que logo que entrei na Academia, no primeiro ano, um professor de português, do curso de Direito, nos trouxe um texto para ser estudado e qual foi o meu espanto ao deitar os olhos sobre o papel. Era a história de São Saruê, tão soprada aos meus ouvidos pelo meu avô nos meus tempos de infante. A história da terra dos rios de leite, dos montes de carne assada, do chão de tapioca e beiju ... e por aí ia. A história eu conhecia bem de tão contada e recontada. Grande foi o meu espanto ao vê-la escrita, datada e assinada. O que para mim não passava de uma fábula perdida na noite do tempo, estava ali com toda riqueza de detalhes que só eu conhecia, e ainda mais, era de um tal de Camilo não sei das quantas, de Guarabira. Hoje eu sei que foi meu avô, muito travesso, que criou toda aquela maravilhosa alegoria que confunde-se com a história da gastronomia regional( aliás, que ele amava tanto). Com um pseudônimo teceu o fabuloso conto, tudo bem escondido e publicado na surdina, e que somente agora eu descobrira, só para embevecer e embalar a imaginação dos netos ávidos pelas suas histórias fantásticas. Esse conto de São Saruê nunca me saiu da cabeça. Uma rica herança de meu avô.

Meu octogenário avô já não fazia anos, ele simplesmente durava. Do alto da ladeira onde se fincava inscrustada a sua casa, ficava ele, sempre imponente, sentado em sua cadeira antiga, a contemplar o imenso “mundo de meu Deus”, o seu mundo “sem fim”. Era ali sentado que mostrava uma face de sua personalidade que muito me chamava à atenção, a Valentia. Ainda que mutilado pela praga da enfermidade que lhe consumia a alma e carcomia incessantemente suas carnes, meu avô era valente em todas as acepções da palavra. Ali sentado dizia que ia fazer e desfazer. Mandava e desmandava. Do alto de sua imobilidade era ágil com as palavras. Desconstruía o mundo e resconstruia tudo a sua maneira, ao seu sentir. Quixotesco, lutava altivo contra seus moinhos de vento, fazia ali suas revoluções e derrubava impérios. Era opinioso. Argumentava muitas vezes com bravura, braços ao ar. Tinha convicções fortes, posicionamentos duros, algumas vezes puerilmente conflitantes e um coração frouxo para as lágrimas que lhe chegavam rápido a qualquer emoção, por menor que fosse.

Mas como eu disse, sempre valente. Valente por ter de enfrentar tão cedo a tragédia de uma diabetes que o privou de tantos prazeres. Uma doença que lhe trouxe dissabores terríveis, ceifando alegrias indizivelmente honestas, como comer a se fartar de tudo que é doce e gostoso, ou de uma boa caçada no meio do mato, ainda que não pegasse nada, só pelo prazer de sentir pisar a terra, sentir o cheiro do mato ... Isso ele não fazia mais. E se fazia era sempre “carregado”, “levado”... Não! Meu avô que era homem de “independências” nunca aceitou de bom grado ser “carregado”, era homem demais para isso. Sempre resolveu tudo com a força de seus braços. Manteve mulher e filhos em épocas difíceis, assim como na natureza, cumpriu o papel do macho a proteger as crias, buscar o alimento... Esse era o meu avô-provedor.

Certamente, grandes traços de sua personalidade se explicam, ao se observar suas grandes frustrações diante das lutas a que teve de sobreviver. Perdeu no desabrochar do amadurecimento da vida, grandes deleites que podia ter desfrutado com a esposa, os filhos, os netos... Assim como esta carta, sua vida foi repleta de reticências cruéis, porém, apesar de tudo, sempre enfrentou as intempéries com soberba valentia. Era tão valente que só deixou a vida quando realmente desistiu da vida. Porque enquanto quis viver permaneceu guerreiro, resistiu ao furor das mais tenebrosas borrascas e sempre sobreviveu. Meu avô teimava em viver.

Minha já desgastada memória de concurseiro, abarrotada de artigos infindáveis, decorados a duras penas, não me permite mais lembrar de muita coisa sobre o meu avô. Porém, me lembro agora de algo que era sagrado em sua casa, o café da tarde. Aquilo era praticamente uma Instituição. Meu avô se preparava todo para sair, muitas vezes com um de seus velhos bonés a tiracolo. Descia a íngreme ladeira e ia ao encontro das fresquinhas fornadas de pão da padaria que ficava bem perto de sua casa. Nós, os netos, ficávamos ansiosos esperando aquela tão aguardada hora da tarde, em que o nosso avô aparecia com o saco de pães quentinhos, prontos a nos alegrar o paladar. Na mesa, devorávamos rápido o café delicioso de minha avó Percides com o pão do vovô, e toda a comilança era embalada pela história de São Saruê, que nessas agradáveis horas da tarde o avô Alcides adorava contar.

Lembro-me agora também, de que uma vez meu avô inculcou de comprar um sítio, mesmo sob os protestos veementes de alguns parentes mais chegados. O velho sítio tornou-se em pouco tempo a menina dos olhos dele. A casa-grande era abastada de espaço, com piso de cimento grosso batido, selada com portões de madeira que serviam de albergue a um sem número de cupins órfãos. A casa era ladeada por um espaçoso terraço onde nos abrigávamos nas tardes quentes, e era cercada por “pés” de tudo.

Recordo-me especialmente de uns cajueiros e laranjais frondosos. Lá tínhamos feijão, macaxeira, entre outras culturas de que não me lembro bem, e uma “casa” de fabrico de farinha mandioca. Não é preciso muito esforço para lembrar-me da dolorosa ferroada que sofri de um marimbondo enfezado de um laranjal, me amargando um dos dias em que visitava o sítio. Comíamos galinha de capoeira guisada com “bolinhos” de feijão verde com farinha. Assávamos castanha em latões do lado da casa. Espetávamos milho pra’ comer bem tostadinho depois de assado na fogueira improvisada. Deitávamos no terraço da casa para a sesta refestelante ao sopro suave da brisa morna da tarde... Eu era muito menino, porém tenho algumas lembranças bem vivas... Ali no sítio meu avô se realizava. Era o mais feliz dos homens, e mais homem que qualquer outro homem. No SEU sítio meu avô era REI. Aquele era seu mundo, seu reino, sua terra mais genuína, seu remanso mais precioso. Ali estava inteiro de alma, sem qualquer máscara ou fingimento, na completude do seu ser. Em harmonia com a terra, com a natureza, com o “mato” bem verde. Até hoje eu acho que aquele sítio era mesmo uma extensão de meu avô...

Penso que meu avô Alcides tinha cabelos brancos de avô de verdade. Óculos antigo, pesado e grave, como todo avô que se preze deve ter. Tinha a fala rouca e brava para reprimendas, entretanto voz mansa e pastosa para as doces histórias contadas aos netos. Como todo avô de respeito, tinha reumatismo, dor nas costas, pente antigo, talquinho cheiroso, calçolão, espingarda enferrujada e roupa bem velhinha de que gostava vestir. Cadeira velha pra’ só nela se sentar; manias e esquisitices diversas que só o avô legítimo apresenta. Cochilo fora de hora, sonhos a valer, esquecimento e rugas que fazem um verdadeiro avô. Usava “chapa”, apetrecho aliás, que só o autêntico avô possui( e não se engane, dentadura de gente em que não falta um ou dois dentes verdadeiros, atesta que o cidadão não pode ser avô, ou é um embusteiro). Avô que é avô, conta história e aumenta um pouco a alegoria, puxa a brasa pra’ sua sardinha, e nisso meu avô era “craque”. Avô que é avô guarda a casa, bota os netos pra’ dormir, faz carinho tímido, meio que sem jeito; não desaba na frente da gente, chora escondido pra’ que a gente não veja; é fortaleza nas horas de angústia; é super herói de poucos movimentos, cabelos brancos, travestido de vovô; se levanta da cama com o sol raiando cedinho. Avô que é avô, é serio às vezes, outras é bonachão e irreverente. É engraçado e displicente, desajeitado. Umas vezes é carrancudo e teimoso, outras vezes é doce e terno. Umas vezes é de cismar em não ir, outras é “Maria vai com as outras”... E meu avô sabia ser tudo isso... E ir inventando e se reinventando... Como um avô de verdade deve ser...

Despeço-me de meu avô na esperança de revê-lo inteiro, de “corpo” e alma (ou espírito, como queiram), sem tristeza ou qualquer dilaceração dolorosa do passado, lá na Glória. Porém, enquanto caminho por estas terras áridas, sempre a acompanhar o encarquilhar do mundo, quero não apenas espelhar-me no exemplo de sua valentia, de sua coragem e atitude diante das agruras da vida, mas quem sabe mesmo sorver, como quem bebe um elixir ou uma poção, um pouco da bravura intrépida, valentia descomunal e da coragem singular que lhe inspirou uma vida inteira.

Adeus por um instante, meu avô.

De seu neto, George.

(Este texto é dedicado à memória de meu avô e a prima Eloisy, a quem ele tanto amava)


18 fevereiro 2007

LÁ SE FOI O VELHO ALCIDES






Iniciava o mês de dezembro de 2006. Em uma de minhas inúmeras idas a residência do meu velho sogro e amigo Alcides, senti um nó na garganta ao contemplá-lo num estado de sofrimento físico e mental intenso. Estava ali sendo consumido pela velha diabetes descompensada que lhe afetara a visão, os rins e o cérebro. Seu olhar era o de quem estava prestes a partir. Dirigiu-se para mim com os olhos marejados e a voz fraquinha embargada pela emoção: “Levi! Eu já me sinto um morto”. Vim saber por uma de suas filhas, que ele tinha falado que partiria em uma dessas festas de fim de ano.
O homem que tantas vezes enfrentara a morte, já vinha me surpreendendo há muito tempo em sua trajetória de enfermidades, saindo de situações críticas em várias entradas em CTIs. Perguntava para mim mesmo: “Será que ele não vai buscar forças para sair de mais um quadro grave, como este que estou presenciando?” A sua força de vontade de viver, até então, era muito grande, e eu achava que esse desejo intenso dele, em não se render às evidências médicas, era o fator primordial de suas muitas recuperações. Quantas vezes, eu não fui testemunha ocular dos difíceis momentos em que tudo apontava para um desenlace final, e ele surpreendentemente saía do “coma”. O homem realmente era imprevisível.
Naquele dia estava diante de mim um outro Alcides. Já sem forças para andar, para falar, e se alimentar com as próprias mãos. Resignado. Certo de que a sua passagem se daria até final do ano em curso. Eu, como médico, jamais ia concordar com este triste vaticínio. Lembro que na ocasião disse para ele: “Os pensamentos do homem não são os pensamentos de Deus, Seu Alcides!” “O Sr. Não vai morrer este ano”. Ao dizer estas palavras, recebi como resposta o seu olhar desapontado, que revelava mais a tristeza da finitude humana, do que a esperança de um dia poder em sua cadeira de rodas, conversar descontraidamente comigo, como fazia comumente no final das tardes dos dias em que estava de folga do meu trabalho. Naquelas tardes, quando a sua saúde ainda não dava sinais de que o seu fim estava próximo, eu me regalava ouvindo as suas aventuras contadas de uma maneira peculiar, que só ele magicamente sabia relatar. Eram histórias ditas com tantos e interessantes detalhes, que na minha imaginação parecia estar fazendo com ele uma viagem sentimental de volta no tempo, vendo com os olhos da alma o mundo encantado em que ele vivera em uma época distante.
Chegara o Natal. Foi no almoço tradicional deste dia, quando toda a família estava reunida em torno da mesa, que eu notei o semblante do velho Alcides Leite diferente. A alegria e a esperança voltaram a se estampar naquele rosto. Não podia alimentar-se com as suas mãos, mas estava feliz, com a sua filha caçula a levar o alimento a sua boca com um carinho todo especial. O desejo ardente de viver tinha novamente nascido em seu coração.
Subi a ladeira da Sta. Terezinha, entrei em sua casa, fui até o seu quarto e falei: “Estamos em 2007, Seu Alcides e o senhor ainda está aí contando sua história”. Aquilo que o senhor pensava que ia acontecer, era tudo produto da imaginação humana”. “Tá vendo ─ disse eu. A gente não sabe o dia da partida, só Deus é quem sabe.”
Daquele dia em diante ele passou a se sentir mais animado. Passou-me a responsabilidade de fazer o que fosse necessário em benefício de sua saúde. Inclusive de levá-lo para ser atendido por especialistas em João Pessoa. Estava até disposto, se fosse o caso, a ser hospitalizado no Hospital da Unimed. A partir daquele momento, lutou contra a morte por mais de quarenta dias. O diagnóstico de que os seus rins estavam quase paralisados, não o esmoreceu. Durante todo este período nunca reclamou nem se lamentou. Era um homem acostumado às dores. Afeito aos maiores tipos de sofrimento.
O prognóstico a cada dia que passava, era muito ruim. Os exames periódicos demonstravam a caminhada fatídica para uma paralisação total dos rins. Porém ele não desanimava. No dia em que viajou para Capital do Estado e recebeu do médico a noticia de que deveria fazer urgentemente hemodiálise três vezes por semana, chegou a sua casa triste, não pelo diagnóstico, mas pela recusa de suas filhas em não terem deixado o mesmo lanchar uma tapioca com bastante coco e queijo derretido que tanto desejava naquele momento, como fazia antigamente quando eu viajava em sua companhia.
Na segunda semana de Fevereiro a sua doença se agravou profundamente. Estava ofegante, como se estivesse morrendo afogado em seus próprios líquidos pulmonares. Foi diagnosticado um edema agudo de pulmão, e internado urgentemente no CTI do Hospital Regional de Guarabira. Não entregou os pontos. Lutou por oito dias. Todo cheio de sondas, mangueiras, fios. Respirando com a ajuda de aparelhos. Eu o visitava três vezes por dia. Hora nenhuma perdeu a serenidade. Eu via ali um valente guerreiro a desafiar a morte.
No oitavo dia, os exames que eram realizados diariamente apontavam para um quadro irreversível. Ali eu já tinha certeza de sua passagem iminente para outra vida. Na manhã desse dia, uma quinta-feira, lhe fiz minha última visita. Aproximei-me do seu leito e falei alto ao seu ouvido: “Seu Alcides! Quer ir p´ra casa hoje?” Ele não respondeu. Os olhos já sem reflexos, banhados por uma nata, já não viam mais coisas deste mundo terreno. Repeti a pergunta: “Se estiver me ouvindo, faça um sinal: quer ir para casa hoje?” Ele com muita dificuldade levantou o polegar direito por entre os lençóis, em sinal positivo. Saí dali sem compreender, pensando comigo: “Como é que um homem num estado desse, ainda sente o desejo de voltar para sua casa. É muita fé mesmo”.
Não tinha a mínima idéia de que a casa a que ele se referia era uma outra casa, onde não havia dor, nem tristeza.
Depois, olhando para o velho sogro e amigo no ataúde, pude observar atentamente, que o seu rosto irradiava uma tranqüilidade que não era desse plano. Nunca tinha visto em minha vida uma expressão tão perfeita de serenidade.
É, não tenho dúvida nenhuma: ele dormia o sono dos justos.