27 novembro 2013

Nosso Lado Melancólico e Cruel




Hipócrates, 400 AC, baseado nos quatro elementos da natureza (Terra – Ar - Fogo e Água), criou os quatro modelos biotipológicos para enquadrar os seres humanos

O Melancólico ― seria o sujeito triste, deprimido, poético e artístico.
O Fleumático ― seria aquele indivíduo tímido, lento, racional e coerente.
O Colérico ― seria o impetuoso, energético e apaixonado
O Sanguíneo ― era aquele afetuoso, alegre, otimista e confiante.

 Mas essa coisa de rotular os seres humanos dentro de instâncias estanques é coisa do passado. Nos idos de 1966, a minha mestra e psiquiatra, Maria de Lourdes Pereira, em umas de suas aulas práticas no manicômio Juliano Moreira, (João Pessoa), quando pagava a cadeira de Psicologia/psiquiatria disse algo que ficou gravado indelevelmente em minha mente: “Todos nós temos doses dos sintomas das pessoas rotuladas como loucas. Tudo é questão de grau, não existe essa tal de normalidade tão sonhada”.

Mas o que o pai da medicina viu, para incluir os poetas e artistas no rol dos melancólicos? Seria o melancólico aquele que vive de ilusões?

Os antigos astrólogos diziam que os melancólicos eram pessoas que tinham sido atingidas pelo mal de Saturno, caracterizados pela tristeza, o horror, enfim, o ”negro da coisa” ― daí, o nome de “doença da bile negra”. O termo “negro”, aqui usado no sentido pejorativo, talvez, evoque a primeira dor, o primeiro luto, o primeiro desamparo.

O que me levou a fazer esse breve preâmbulo, foi um trecho (diálogo entre um senhor e uma madame) que li recentemente, de autoria do poeta e cientista dinamarquês, Jans Jacobsen (falecido em 1885), colocado em destaque na primeira página do livro — A Crueldade Melancólica” —,do psicanalista Jacques Hassoun (1936 ― 1999). O brilhante excerto, que replico aqui, com os devidos créditos, é uma espécie de “Ode à Melancolia”. Esse afeto sombrio e cruel tem tudo a ver com o desejo atormentado de encontrar o impossível que foi perdido em um tempo distante, lá nas nossas origens. Mesmo sabendo que nada será como antes, procuramos incessantemente esse elo perdido:


― A senhora não sabe, Madame ― retomou Sti Horg, em voz lenta, aparentemente constrangido e sem saber se devia falar ou se calar —, a senhora não sabe, Madame, que há no mundo uma sociedade secreta que se poderia chamar de “a companhia dos ‘melancólicos”? São pessoas que, desde o nascimento, são diferentes das pessoas comuns; elas têm o coração maior e o sangue mais vivo, querem e desejam mais, aspiram com mais ardor e suas paixões são mais violentas, mais ardentes que as do homem comum[...]. Só que buscam na árvore da vida flores que outros nem imaginam a existência, flores que ocultam sob as folhas mortas e os ramos ressecados. E os outros, conhecem eles a volúpia da tristeza ou da desesperança?[...]
— Mas por quê? — perguntou Maria, dele desviando seus olhos com indiferença. — Por que o senhor os chama de “melancólicos”, já que, afinal, só pensam na alegria e nos gozos da vida e não no que é difícil e doloroso?
— Por quê? — exclamou ele, impaciente e com entonação desdenhosa. — Por que toda a alegria terrestre é breve e corruptível, falsa e imperfeita; porque a volúpia, apenas aberta como uma rosa, perde suas folhas como uma árvore no outono; porque cada prazer soberbo da vida, resplandecente de beleza e em plena floração, no instante mesmo em que vai apoderar-se de nós, é corroído por um câncer, de modo que nele percebemos, assim que se aproxima dos lábios, o espasmo da decomposição[...]. E a senhora pergunta por que os chamo de “melancólicos”, pois toda a volúpia, uma vez alcançada, muda de rosto e se torna fastio, pois cada transporte de contentamento é só o último suspiro de alegria, pois toda a beleza é a beleza que mente; toda a felicidade, uma felicidade que se rompe. (Jans Peter Jacobsen)


O drama do melancólico é o drama de Sísifo, personagem da mitologia grega, condenado indefinidamente a levar nas costas um bloco de mármore em direção ao cume de uma montanha, sem, no entanto, chegar a atingi-la, pois, quando está prestes a conseguir, o bloco escapa de si, rolando para o precipício.  Sísifo fracassa ao não conseguir o objetivo idealizado, e, desamparado, retorna ao ponto de partida para uma repetição sem fim de sua desventura.

Os poetas são melancólicos na medida em que retira do seu exaustivo e cruel percurso (ou do seu “sobe e desce da montanha existencial”), farto material para construir um poema; os escritores, de uma maneira geral também o são, ao brincar de palavras para não perceber o tempo passar; da mesma forma o oleiro, que diuturnamente contorna seu vazio, emoldurando-o em forma de vasos; ou o músico que faz da sua dor um acalanto, ou uma lânguida melodia.

“O melancólico é uma pessoa que perdeu o amor pela vida, e aspira à morte como uma bênção” — afirmou o Pai da Medicina. Mas o filósofo grego, Aristóteles, fez um contraponto a Hipócrates(seu contemporâneo), com esta emblemática pergunta deixada no ar: “Por que razão todos os homens que se dedicaram a poesia ou as artes são manifestamente melancólicos?”

Talvez, o desejo de normatizar o que é são e o que é doentio tenha influenciado o velho médico a conceituar a melancolia como um “mal” a ser tratado ou extirpado. Já o filósofo, aquele que cria e recria o seu "sublime/sombrio", aceitando a bipolaridade dos afetos, não hesita sorver a seiva “bile negra”, o “mal” (a volúpia da melancolia), para contrastar com  aquilo que é rotulado de  “bem” (a volúpia da alegria).


Por Levi B. Santos

6 comentários:

George disse...

È verdade que muitos escritores e sobretudo poetas foram erigidos pela melancolia e eram figuras tristes por natureza, mas não pode se deixar de capturar a dimensão do fingimento e da desfaçatez literárias, que muitas vezes se mistura ao "verdadeiro", quando lembramos que o poeta é "um fingidor que finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente".
Outro ponto é que o Sísifo era um tremendo calhorda. Espertação que vingou-se pelo roubo de suas ovelhas seduzindo Anticleia filha do ladrão Autólito e engravidando-a como vingança; chantageou Asopo que teve a filha sequestrada por Zeus, e fez com que o mesmo Asopo construísse um poço para a cidade em troca da informação do autor do rápito;enganou a Zeus e a morte prendendo o seu algoz no Hades e voltando a vida normalmente com sua esposa, etc. O tal Sífifo "safado" talvez não seja a melhor figura a representar a melancolia resignada dos poetas e literatos, e sua figura adere mais significativamente (aproveitando ensejo político) ao encarcerado safo José Dirceu, o administrador da CADEIA de Hotéis em Brasília.
Em tempo! Schopenhauer sim, era sim um autêntico melancólico pessimista em toda a propriedade da Palavra!
Guimarães Pessoa Arthur de Andrade

Levi B. Santos disse...

Creio que Lacan, vivo fosse, interpretaria pelo avesso a expressão ”fingir que é dor, a dor que o poeta sente”

Pelas minhas poucas leituras lacanianas, penso que poderíamos dar uma interpretação não tanto polarizada, quanto esta que o nobre confrade defende.

Aí vem o paradoxo humano:

O poeta ou o artista é aquele que busca vestígios de si, no OUTRO. A dor do OUTRO, seu semelhante, não é sua, mas ele a imagina como sua. Lacan diz que o “ REAL” não é o palpável, pode ser uma “ilusão” que por se apoderar tão fortemente à alma do indivíduo, ele a tem como SUA.

Por sinal, há poucos momentos, estava lendo um livreto espetacular sobre LACAN, ― de Vladimir Safatle ― obra que faz parte da coleção PubliFolha. Tem um capítulo sobre o “Real”, o “ Simbólico” e o “Imaginário”, que deixa bem claro esse viés psicanalítico de ver e ler o que o poeta diz nas entrelinhas, ou além do que está escrito, ou pelo avesso (como queira) - rsrs

Como você bem sabe, é pelo lado avesso de um lindo bordado , que se nota o intricado feio de linhas e nós que o formaram.

Abçs, e volte sempre

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Caro Levi,

Lendo este instrutivo artigo que escreveu, lembrei-me d diálogo entre Jesus e a mulher samaritana de João 4 em que o Senhor ali falou de uma "fonte de águas vivas".

De fato, qualquer um que bebe das águas comuns tornam a ter sede e daí eu indagar se não falta ao sujeito melancólico um pouco de fé?

Forte abraço.

Levi B. Santos disse...

Caro Rodrigão

A “sede” pode ( por que não?) ter algo em comum com o que se denomina “ .

Na simbologia psicanalítica, ”ter sede” significa aspirar algo de forma ardente.
Segundo Lacan, aquilo que nos falta é que sustenta o nosso desejo. Então, não devemos esquecer que é impossível excluir a melancolia de nossas vidas. Ela representa o espaço negativo, a falta ou o vazio que está sempre se perpetuando, para atrai o desejo.

A “clínica lacaniana”, Rodrigo, é uma espécie de Teologia negativa. Ela faz do vazio ou da falta, o motor dos desejos humanos, como está explícito nesse trecho de “ A Vida é Um Jogo Chinês” que postei em outubro de 2010 no “Ensaios & Prosas”:

“Mas, foi observando com calma a dinâmica de um quebra-cabeça chinês, que pude ver com clareza a história da FALTA que põe em movimento o moinho dos ANSEIOS HUMANOS, tão bem descritos nas irretocáveis metáforas do prólogo bíblico do Gênesis.
Todos nós conhecemos o jogo do quebra-cabeça chinês: um pequeno quadrado, em cujo interior ficam letras ou números estampados em quadradinhos móveis. Nele existe um lugar VAZIO que permite movimentar as peças uma após outras, com o intuito de formar uma palavra ou compor uma ordem numérica. É graças a essa AUSÊNCIA, VAZIO OU FALTA, que o jogo pode então começar. Sem esse VAZIO o jogo não funciona.
Da mesma forma que o jogo chinês, assim funciona a nossa vida. Temos um VAZIO, algo que nos falta e que, na ânsia de preenchê-lo, apenas o mudamos de lugar. O VAZIO não desaparece, ele sempre está se encontrando em uma outra parte de nossa trágica e jubilosa vida, como no quebra-cabeça chinês.


Querendo ler esse artigo na íntegra, aí vai o link:

http://levibronze.blogspot.com.br/2010/10/vida-e-um-jogo-chines.html

Abçs,

Eduardo Medeiros disse...

Já li que hoje em dia, não se coloca mais as pessoas em um único grupo: melancólico, sanguíneo... mas que as pessoas na verdade possuem características dos 4 grupos.

Mas quanto a essa abordagem do nosso "lado melancólico" não tenho muito a acrescentar, só a aprender, rs

bela postagem!

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Interessante este ponto de vista, Levi.

Realmente, se a pessoa se sente motivada a preencher um vazio, ao menos ela está se movimentando e, sem dúvida, fé também é ação. Pior atitude seria a do apático que por nada tem mais interesse.

Se o crente afirma cabalmente que Deus existe e o ateu o contrário, ambos se consideram donos da verdade. Por isso, como teria dito certa vez numa entrevista o rabino argentino Abraham Skorka, amigo pessoal do papa Francisco,

"A posição mais rica é a daquele que duvida. O agnóstico pensa que ainda não encontrou a resposta, agora o ateu tem certeza, 100%, de que Deus não existe. Tem a mesma arrogância de quem garante que Deus existe, tal como existe esta cadeira sobre a qual estou sentado. Nós, religiosos, somos crentes, não damos por cena Sua existência. Podemos percebê-la em um encontro muito, muito, mas muito profundo, mas nunca O vemos. Recebemos respostas sutis. A única pessoa que, segundo a Torá, explicitamente falava com Deus, cara a cara, era Moisés. Aos outros — Jacó, Isaac —, a presença de Deus chegava em sonhos ou em refrações. Dizer que Deus existe, como se fosse mais uma certeza, também é uma arrogância, por mais que eu acredite que Deus existe. Não posso afirmar superficialmente Sua existência porque tenho de ter a mesma humildade que exijo do ateu. O exato seria dizer — como Maimônides enuncia em seus treze princípios da fé — “eu acredito com fé plena que Deus é o Criador”. Seguindo a linha de Maimônides, podemos dizer o que Deus não é, mas não podemos assegurar o que Deus é. Podemos mencionar suas qualidades, seus atributos, mas de jeito nenhum podemos lhe dar forma. Eu recordaria ao ateu que há uma perfeição na natureza que está enviando uma mensagem: podemos conhecer suas fórmulas, mas nunca sua essência."

Abraços