24 maio 2013

“Vale de Ossos Secos”: O Enigma




Estava eu, solitário, na tarde da última quarta Feira (dia 21), a descansar no alpendre de minha casa, deliciando-me com um vento ameno que soprava gostoso, denunciando o fim da estação calororenta de um verão tardio. Tinha o olhar fixo no céu nublado que prenunciava um inverno que teimava em não apresentar sua verdadeira cara de chuvas torrenciais, que sempre nessa época caem, quando uma visita inesperada e inusitada levou-me ao tempo de minha juventude ― época em que os eflúvios de minha vivência igrejeira “espiritual” se mesclavam com os efeitos dos hormônios responsáveis pelo desabrochar dos instintos ou afetos de fundo sexual. Fui levado ao passado da minha inocência, tempo em que exibições exteriores de uma aura de santidade vestiam o meu viver, quando na verdade, sem firmeza, cambaleava entre a Lei e a culpa pela “fraqueza” de ceder a um desejo maior que incessantemente me dilacerava a carne.

A visitante ilustre militava comigo nas Assembléias de Deus na Capital do Estado. Ainda, hoje, apesar do peso da idade, essa incansável militante pentecostal a frente do Círculo de Orações, continua a exercer o seu ministério com muita garra. Antes de qualquer conversa apresentou-me fotos encardidas de um tempo em que fazia parte de um conjunto musical evangélico. Na foto, lá estava eu com um acordeom verde brilhante da marca Hering, junto a guitarristas e violinistas a tocar não sei que hino.

De posse das duas fotos, eu e minha ilustre visitante ficamos a conferenciar, por um bom pedaço de tempo, sobre qual seria o hino que estaria ali tão garbosamente a executar. Seria um hino “penoso” em tom menor, ou seria um num ritmo mais animado, em tom maior? Depois de pensar um pouco, eu lhe disse: “pelo jeito e pelas caras dos componentes, estávamos tocando um hino avulso, que começava com a frase:a vida tem tristezas mil, nem tudo é um céu de anil..., Lembro que tínhamos adaptado esse hino num ritmo bem frenético, denominado na época, iê-iê-iê ― o mesmo estilo executado pela Jovem Guarda tão decantada pelos moços daqueles saudosos anos.

Ela mostrou-se imensamente interessada em saber se eu ainda cria em, Deus, Jesus e o Espírito Santo. Respondi que essas ligações afetivas imaginárias transcendentes, apesar de traduzi-las de uma maneira não dogmática, não estavam desarquivadas do meu inconsciente. Fiz ver, que os belos hinos do hinário “Harpa Cristã”, hoje, ainda me faziam sentir os mesmos eflúvios do passado, e que eu não me considerava des-ligado desse passado no qual fui forjado.

Tive a oportunidade de recordar fatos do meu passado igrejeiro, desta feita, fazendo em paralelo, uma releitura bem mais sincera e transparente do que realmente se passava na minha alma, naqueles dias de fulgor e fervor, quando cursava o científico, preparando-me para o vestibular de Medicina.

Depois de conversa vem, conversa vai, a irmã em Cristo segredou-me que tinha uma mensagem do Deus dos meus pais, a mim endereçada: Tratava-se da profecia sobre o "vale de ossos secos", que se encontra no livro de Ezequiel (V.T). O estado degradante em que se encontrava sua nação no cativeiro da Babilônia, por certo, comoveu o profeta em seu íntimo, a ponto de se ver diante da figura de Javé, que o impelia a falar para um vale cheio de ossos ressequidos. Movido por um desejo intenso de liberdade, no seu imaginário, o profeta em exílio via pelos olhos da fé um montão de ossos se juntando e se encarnando, para formar um poderoso exército. Lembrei-me de que nos tempos do meu ativismo religioso, essa parábola de Ezequiel funcionava como uma mensagem de otimismo a sacolejar corações empedernidos.

Antes de encerrar o diálogo que já durava quase duas horas, a amiga pescadora de almas pediu-me encarecidamente que fizesse uma reflexão sobre essa emblemática passagem bíblica, e depois tirasse as minhas conclusões. Como essa tal de “conclusão” tem muito a ver com a subjetividade de cada um, entendia que a clareza da matemática que diz que o produto é igual à soma dos fatores, aqui, não encontraria respaldo.

Às vezes, por mais que se tente, não há como impedir coisas que vêm na cabeça da gente, de repente. Perguntei a mim mesmo: a história dos ossos secos seria o sinal de minha magreza, pois de duas semanas para cá, uma gastrite, ou sei lá o quê, tinha me incomodado bastante? A retirada de tudo que era de gordura da alimentação, me fizera perder cerca de três quilos. Mas a minha interlocutora de imediato refutou as minhas divagações. Considerando a minha racionalização como coisa de um “homem natural”, falou-me que “a interpretação deveria ser de fundo espiritual!”. E aí, a senha estava dada para que eu me esforçasse no sentido de tirar lições da metáfora, “vale de ossos secos”.

 A tarde já tinha se ido, quando a ilustre senhora despediu-se de mim, com um “A Paz do Senhor!” bem incisivo, e um ar de contentamento ante a minha promessa de empreender uma reflexão acurada sobre o enigma do “Vale de Ossos Secos” da visão do profeta Ezequiel.  

Prometi a minha interlocutora que iria me debruçar sobre a enigmática teofania do profeta do “vale dos ossos secos”, sem no entanto deixar de lado, o que disse Espinoza ― descendente de judeus imigrantes do século XVII ―, quando dissecando sobre profecias e a predisposição do profeta, assim se expressou: “O estilo da profecia varia conforme a eloqüência e o estado de espírito de cada profeta”.

 Dizem os poetas: “quando as circunstâncias não permitem a fuga física, o jeito é fugir em pensamento. Mesmo estando abatido, o sujeito pode de uma hora para outra, através da imaginação, transformar o seu mundo”. Considero uma missão impossível expressar ou definir a subjetividade, porque ela única para cada ser, e como a impressão digital que imprimimos em nossos documentos, não se repete em nenhum outro indivíduo entre os bilhões que habitam a terra.

Sabendo que a imaginação é a única parte de nós que ninguém é capaz de tocar, compreendi que nem sempre o que o nosso interlocutor diz, chega aos nossos ouvidos da forma como ele imagina, em consonância com o que disse certa vez o pensador francês, Michel de Montaigne: “A palavra pertence metade a quem a profere e metade a quem a ouve”.

E não é que fiquei com a impressão de que quem deveria profetizar para meus ossos secos, seria eu mesmo: ressuscita, ressuscita!. Te anima, meu velho! Não estás tão doente assim! Ainda há muito por fazer!foi o que me veio à mente depois que a visitante de mim despediu-se, deixando-me a sós: momento em que a exacerbação de minha gastrite me fez sair correndo à procura do Omeprazol de 20mg ― antídoto contra os sintomas desse mal ―, que mantia dentro de uma gavetinha repleta de medicamentos para diversas disfunções físicas, lá em um recanto do meu quarto.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 24 de maio de 2013

Site da Imagem: www.ibas.org.br

3 comentários:

Eduardo Medeiros disse...

Boa história, Levi!

Quantas vezes ouvimos sermões cuja temática era "Dar ordens aos ossos secos"? É uma mensagem que fala de esperança; que fala que ainda não é o fim, mesmo diante de situações tão adversas quanto esqueletos sem pele, músculos, nervos.
Nossa mente existe em sintonia fina com nosso corpo - não creio que a mente seja apenas um epifenômeno do cérebro - e em última instância, é a mente que cria o mundo.
Como ignorar os efeitos benéficos ou danosos que uma atitude mental positiva ou negativa têm sobre nós?
Então, meu servo, profetiza!!!! rss

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Essa passagem da Bíblia, assim como muitas outras, torna-se atual pela conclusão que fez. Cabe o ouvinte dar à mensagem o significado conforme o contexto de sua vida. O exílio de Israel (VI a.C) é fato do passado e, onde era a Babilônia, virou morada de chacais e das avestruzes (Jeremias 50:39).Porém, a profecia do Vale de Ossos Secos confortou Israel em muitos outros momentos posteriores. Seja na resistência contra Antíoco Epifânio, os romanos, nos quase dois mil anos de Diáspora e mais recentemente no holocausto nazista até que, finalmente, os judeus conquistaram um Estado que já comemora 65 anos.

Para nós, cristãos, já não guardamos tanta identidade com o contexto histórico de Ezequiel, mas a essência espiritual permanece a mesma. Trata-se, como bem colocou acima do Eduardo, de "uma mensagem que fala de esperança; que fala que ainda não é o fim, mesmo diante de situações tão adversas quanto esqueletos sem pele, músculos, nervos".

Sendo assim, concordo com Edu sobre profetizarmos. Seja para nós mesmos como para a nossa geração, para o Brasil e para a Igreja. Pode ser também para um irmão em dificuldades e até um não crente. Basta que esteja os sensíveis ao mover do Espírito. Afinal, como declarou a Confissão de Westminster, o Espírito opera "pela Palavra e com a Palavra testificada em nosso coração".

Abraços.

Anônimo disse...

Hi there, all is going nicely here and ofcourse every one is sharing information, that's genuinely fine, keep up writing.

Feel free to visit my blog post :: cellulite treatment reviews