05 agosto 2007

MEU AVÔ E SUA REVELAÇÃO BOMBÁSTICA







Eu tinha dezesseis anos de idade quando transcorria o ano de 1962. Meu pai tinha falecido há mais ou menos uns três meses, e meu avô materno decidiu se instalar em minha casa. Acho que a sua decisão foi mais para dar apoio moral e espiritual a uma filha recém viúva e os seus filhos órfãos.

O velho Zé Raulino, meu avô, mudou o clima de relacionamento entre nós, pois ele era muito receptivo em casa, coisa que o meu falecido pai não era. Não me lembro de meu pai ter alguma vez conversado francamente comigo sobre qualquer assunto. Era assim o seu modo de ser: sempre caladão e com um ar sisudo de quem está prestes a brigar. Quando demorava mais tempo em casa, era para ouvir os seus velhos discos de setenta e oito rotações, nas vozes de Núbia Lafaiete, Ângela Maria, Maysa, Anísio Silva, Nelson Gonçalves e aquele de quem ele mais gostava: Luiz Gonzaga. Era quando a voz destes cantores enchia a casa toda com um som poluído pelos ruídos provocados pela agulha (que mais parecia um prego), extraídos de uma velha vitrola em forma de maleta.

Particularmente eu tinha um temor muito grande ao me dirigir a meu pai, pois poderia falar algo que o desagradasse. Talvez, a minha extrema timidez tenha se alimentado dos muitos carões e algumas surras que levei dele, por ter praticado as peraltices tão comuns na infância.

Não me esqueço nunca, tinha mais ou menos uns oito anos de idade, era um dia de Sábado, e estávamos todos em casa reunidos ao redor da mesa, para jantar. Nessa ocasião estava presente o Tio Neemias (cunhado de meu pai), nos visitando. Lembro-me bem do cardápio dessa noite: feijão verde com farinha para ser comido amassado nas mãos, em “bolos”, que antes de ser deglutidos eram molhados na graxa do toucinho de porco guisado, tendo ao lado, um molho feito com o caldo do feijão cheio de maxixes cozidos e pimenta malagueta. Só se ouvia o mastigar da comida gostosa com a graxa a escorrer pelos cantos das bocas dos convivas. Foi quando de repente, quebrando o silêncio daquele momento se ouviu algo como um suave apito vindo de baixo da mesa. Eu fiquei calado e com o rosto espantado de medo e terror, pois sem querer, o ar que tanto eu estava prendendo nos intestinos, tinha saído apitando baixinho no início, e com o meu nervosismo aumentou o tom, porém foi coisa rápida. Talvez por eu ter me prendido tanto, o “peido” saiu daquela forma: assoviando. Meu pai imediatamente diagnosticou: “Foi você seu safado, e interrompeu o jantar para me dar uma sonora surra”. Então no meu quarto, com as roupas molhadas de urina devido às lapadas que tinha recebido, fiquei atrás da porta, revoltado e encolhido, sob soluços, a pensar: ora, apesar de ter sido coisa feia, ele não poderia ter feito isso comigo, porque apesar dos meus esforços, contraindo os músculos glúteos e os forçando contra a cadeira, o “pum” saíra, rompendo a minha resistência. Eu não tinha culpa.

O pior, é que eu estava revoltado comigo mesmo, pois, se eu não tivesse me contraído tanto, na certa, o maldito tivesse saído de forma abafada e espontânea. E sem fazer barulho, seria mais difícil de reconhecer o autor da façanha, pois um diria: “ não fui eu”; outro responderia: “nem eu”; e assim todos se desculpariam. Há quem afirme: quer saber quem foi o autor? Veja quem primeiro gritou. Mas isso é presunção.
Já tinha presenciado em outras ocasiões diante de muitas pessoas, todo mundo negando a autoria da emanação de gases intestinais no ambiente, isto, quando não se ouvia o seu sinal sonoro, e apenas se pressentia o cheiro característico.
Naquela noite fatídica reconheci que tinha sido burro mesmo: era para ter deixado o danado sair sem pressão. Apanhei de graça.

O meu avô tinha tido mais intimidade com o genro, do que todo o restante da família. Ficou triste, porque no seu dizer, meu pai tinha morrido “desviado”. Esse termo ainda hoje é usado para denominar as pessoas que freqüentam a igreja e depois a abandonam. Meu avô tinha conhecimento de que meu pai antes do acidente de moto que o vitimou em via pública, vinha cantando uma música de carnaval. Na concepção sua e de muitas pessoas íntimas, meu pai morrera sem salvação, e que o destino dessas pessoas quando assim morrem, é o inferno.
Passado alguns meses do falecimento de meu pai, ali no mesmo terraço de minha casa, meu avô me chamou para me contar algo que pela sua fisionomia radiante de felicidade, eu pressenti logo que era algo de bom. Ele debruçado na mureta do alpendre dirigiu-se a mim desta forma:

─ Meu filho! Eu tenho uma coisa muito importante para lhe dizer ─ falou em tom solene, após ter dado as suas comuns cusparadas em direção a rua.
Eu sentando no batente do terraço ao lado dele, disse: Me conte vovô, o que foi?
─ Olhe, ontem a noite Deus me deu uma revelação maravilhosa. Ele me mostrou seu pai ( Moisés) no céu. Fique certo que ele não foi para o inferno, como todos estavam pensando. Deu tempo para ele se arrepender ─ disse o meu avô com ar de satisfação.
Eu me juntei à sua alegria naquele momento. Por três meses, meu avô conviveu com a idéia horrenda de imaginar que seu grande amigo e genro, estava se queimando nas labaredas do inferno. No entanto, dali em diante, me uniria a ele, a fim de desfazer a triste imagem que meu pai deixou no coração dos que ficaram.

Meu pai, dois meses antes de morrer, tinha me dado uma bicicleta de presente, por ter passado em primeiro lugar nas provas finais do colégio local. Ora, o que eu mais almejava, era uma bicicleta na cor azul, e ele me dera uma do jeito que eu sonhara. Eu já vinha pensando desde a sua morte: como meu pai depois de me dar um tão precioso presente, tenha tido o inferno como destino. Imaginava que aquilo era uma injustiça, pois ele já tinha sido penalizado com a morte na flor da idade.
Apesar de hoje ser meio cético com esta história de revelação, não nego que a visão bombástica do meu avô, deu-me naquela época um certo alento.
Meu avô era um homem extremamente religioso, e não se aborrecia com as insinuações que eu fazia sobre temas do mundo bíblico. Um dia, no mesmo terraço da casa de minha mãe eu perguntei para ele:

─ Vovô! O Sr. acredita nesta história da baleia ter engolido Jonas e depois de três dias ter vomitado ele vivo?

Meu avô respondeu rápido, sem titubear:

─ Meu filho! Se a Bíblia dissesse que Jonas tinha engolido a baleia, eu acreditaria.

O velho Zé Raulino, naquele seu jeitão de imaginar o céu e o inferno, era tão feliz, sem os questionamentos que faço hoje. Ele cria porque cria, e ponto final.


Crônica: por Levi B. Santos. Guarabira, 05 de Agosto de 2007


Nenhum comentário: